sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Bola Dourada

::Borries von Munchhausen::



"O que recebi pelo amor de meu pai
eu não lhe paguei,
pois, em criança, ignorava o valor do dom,
e quando me tornei homem,
endureci como todo homem.

Agora vejo crescer meu filho,
a quem amo tanto
Como nenhum coração de pai se apegou a um filho.

E o que antes recebi
estou pagando agora a quem não me deu nem vai me retribuir.
Pois quando ele for homem
e pensar como os homens, seguirá, como eu,
os seus próprios caminhos.

Com saudade, mas sem ciúme,
eu o verei pagar ao meu neto o que me era devido.
Na sucessão dos tempos meu olhar assiste,
comovido e contente,
o jogo da vida: cada um com um sorriso,
lança adiante a bola dourada,
e a bola dourada nunca é devolvida!"


Mencionado no livro de Bert Hellinger, "No centro sentimos leveza", como forma de trazer a tona a imagem da troca entre gerações, o "dar" e o "tomar".

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O abandono que não se esquece

:: Rosemeire Zago ::



Quantas vezes, ainda que na presença de alguém, temos a nítida sensação que em qualquer momento podemos ser abandonados? Quantas vezes, diante de um atraso, sentimos verdadeiro pânico? Quantas vezes nos desesperamos diante da possibilidade da pessoa amada nos deixar?

Quem viveu o abandono durante a infância pode sentir um medo incontrolável de ser deixado, procurando evitar a todo custo ser abandonado novamente. Quando falamos de abandono não é apenas em casos em que uma criança é literalmente abandonada por seus pais, a quem se espera ser amada e cuidada, mas aquelas que são abandonadas através da negligência de suas necessidades básicas, da falta de respeito por seus sentimentos, do controle excessivo, da manipulação pela culpa, ainda que ocultos, durante a infância. Crianças abandonadas, psicológica ou realmente, entram na vida adulta, com uma noção profunda de que o mundo é um lugar perigoso e ameaçador, não confiando em ninguém, porque na verdade não desenvolveu mecanismos para confiar em si mesma.

O abandono está diretamente relacionado com situações de rejeições registradas na infância e que pode se intensificar durante toda a vida, principalmente quando se vivencia outras situações de rejeição e/ou abandono. Cada vez que vivenciamos situações de perda é como se estivéssemos revivendo a situação original de abandono, do qual dificilmente se esquece. Podemos sim, reprimir, fugir desses sentimentos, mas raramente conseguimos lidar sem sofrimento diante de qualquer possibilidade de perda e/ou rejeição. Quando somos rejeitados em nosso jeito de olhar, expressar, falar, comer, sentir, existir, não obtendo reconhecimento de nosso valor, principalmente quando somos crianças, é inevitável que se registre como abandono, pois de alguma maneira, ainda que inconsciente, abandonamos a nós mesmos para nos tornarmos quem esperam que sejamos. Sente-se abandonado quem não se sentiu acima de tudo amado e isso pode ser sentido antes mesmo de nascer, ainda no útero materno. Pais que rejeitam seu filho durante a gestação pode deixar muitas seqüelas, em nós, adultos. Toda criança fica aterrorizada diante da perspectiva do abandono. Para a criança, o abandono por parte dos pais é equivalente à morte, pois além de se sentir abandona, ela mesma aprende a se abandonar.

Conforme percebemos, consciente ou inconscientemente, e ainda muito pequenos, que a maneira com que agimos não agrada aos nossos pais, vamos tentando nos adequar ou adaptar nosso jeito de ser e, aos poucos, vamos nos distanciando de quem somos de verdade, agindo de maneira a sermos aceitos. É quando começamos a desenvolver o que chamamos de um falso self, a um estado de incomunicação consigo mesmo, gerando uma sensação de vazio. O falso self é um mecanismo de defesa, mas que dificulta o encontro com o self verdadeiro. É muito comum que crianças que cresceram em famílias com algum desequilíbrio, proveniente do alcoolismo, agressividade, maus-tratos, ou qualquer outro tipo de abuso, tenha sofrido a negação de seu verdadeiro eu. Crianças que sofreram em silêncio e sem chorar, ou como alguns relatam: "chorando por dentro", podem aprender a reprimir seus sentimentos, pois uma criança só pode demonstrar o que sente quando existe ali alguém que a possa aceitar completamente, ouvindo, entendo e dando-lhe apoio, o que nesses casos, raramente acontece. Pode acontecer dessa criança desenvolver-se de modo a revelar apenas o que é esperado dela, dificilmente suspeitando o quanto existe de si mesma por trás das máscaras que teve que criar para sobreviver.

Alguns pais, inconscientemente, numa tentativa de encobrir sua falta de amor - o que é muito comum, por mais assustador que seja para alguns - declaram muitas vezes seu amor pelos filhos de forma repetitiva e mecânica, como se precisassem provar para si mesmos seu amor, onde as crianças sentem que suas palavras não condizem aos seus verdadeiros sentimentos, podendo gerar uma busca desesperada por esse amor, cuja busca pode se estender durante toda a vida. Ficar só para essas pessoas pode ser uma defesa para evitar novamente o abandono, gerando um conflito constante entre a necessidade de ser cuidado e o medo de ser abandonado.
É muito comum a criança se sentir abandonada em famílias muito numerosas, onde há muitos irmãos, e os pais não conseguem dar atenção a todos. Ou quando os pais constantemente estão ausentes pelos mais diferentes motivos, seja em função do trabalho excessivo, viagens, doenças, internações constantes, ou até pela dificuldade em cuidar de uma criança, não conseguindo fazer com que se sinta amada nem desejada naquela família.

A sensação de ter valor é essencial à saúde mental. Essa certeza deve ser obtida na infância. Por isso que a qualidade do tempo que os pais dedicam aos seus filhos indica para elas o grau em que os pais as valorizam. Por outro lado, a criança que é verdadeiramente amada, sentindo-se valiosa quando criança, aprenderá a cuidar de si mesma de todas as maneiras que forem necessárias, não se abandonando quando adulta. Assim como crianças que passaram maior parte de seu tempo com pessoas que eram pagas para cuidar delas, em colégio interno, distante de seus pais, não recebendo amor verdadeiro, mesmo tendo tudo que o dinheiro pode comprar, poderão ser adultos como qualquer outra criança de tenha vindo de um lar caótico e disfuncional, crescendo sentindo-se pouco valiosa, não merecedora do cuidado de ninguém, podendo ter muita dificuldade em cuidar de si mesma. Ou seja, a maneira com que nos cuidamos quando adultos, muitas vezes reflete a maneira com que fomos cuidados quando crianças.

Precisamos chegar a ponto de perdoar aqueles que de alguma forma nos abandonaram ou que nos causaram uma dor profunda. Para alguns, essa é uma tarefa fácil, mas temos que admitir que para outros, pode ser praticamente impossível. Como perdoar um pai bruto, que o fazia trabalhar desde muito pequeno ou pedir dinheiro, do qual depois consumia em jogos e bebidas? Como perdoar um pai que abusou sexualmente da filha, psicologicamente do filho? Como perdoar uma mãe que trancava os filhos no armário ou no quarto ao lado enquanto se encontrava com outro homem dentro da casa, ou quando deixava os filhos sozinhos em casa dizendo que ia trabalhar, quando na verdade ia se divertir? Como perdoar pais que sempre ocultaram a verdade, insistindo na mentira? Como perdoar um irmão que abusou sexualmente da irmã? Como perdoar uma mãe que demonstrava suas insatisfações através de gritos com seus filhos? Como perdoar um pai que batia constantemente na mãe na presença dos filhos? Como perdoar aqueles que roubaram a infância e inocência de muitas crianças? Como perdoar aqueles que o deixaram, o abandonaram? Não é possível perdoar se o perdão for entendido como negação do fato, pois precisamos sentir a dor que ficou reprimida em nossa alma. Perdoar não significa aceitar, mas se permitir sentir e expressar toda a raiva e dor reprimida e encontrar caminhos saudáveis que podem transformar esses sentimentos em experiência e aprendizado.

Ao nos tornarmos mais conscientes de nossas feridas, entre elas as geradas pelo abandono, podemos agir sobre aquilo que vivenciamos, aprendendo a respeitar nossos sentimentos mais profundos, assumindo a responsabilidade pelas mudanças que podemos nos permitir vivenciar no momento presente. Não se trata de regresso ao lar, porque muitas vezes esse lar nunca existiu. É a descoberta de um novo lar, o qual cada um de nós pode construir, sem mais se abandonar.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Momentos de escolhas...

:: Mon Liu ::



A vida é simples, o ser humano é que gosta de complicar tudo. Inventam-se mil desculpas, procrastinam-se as decisões, vegeta-se! Por medo, insegurança, acomodação. Apego aos bens materiais, às finanças, à estabilidade. Posse, controle, ciúmes. E o que fazer com a intuição? Esqueça, é pura bobagem, diz o lado esquerdo do cérebro. Melhor ficar no que é real, no concreto. Não perca tempo com ninharias!

Massacram-se os sentimentos, embutem-se as emoções, anula-se o amor. E vai-se levando esta ausência de sensações mais fortes. Sede de paixões, do coração bater mais forte, de viver! A alma pergunta: até quando? Procura-se outra pessoa, estando casado? Separa-se e aí... vai à caça? Empurra com a barriga este casamento falido por causa dos filhos? Como saber o caminho correto? O que fazer? Como sair deste turbilhão astral?

As mudanças começam no caos para chegar ao equilíbrio. As incertezas, o medo do amanhã, a perda de qualidade de vida assustam os casais. E quando têm filhos envolvidos? Mais objeções para não se separarem... Mal sabem que o ambiente fica tão carregado que deixa as crianças doentes! Tudo é em função deles, satisfazer os seus mínimos desejos. Tornam-se a razão de vida dos pais. Poderá se gerar futuros adultos sem limites, eternamente insatisfeitos, sem iniciativas para nada. E depois, os filhos são emprestados. Criam-se para o mundo. Decidir o destino deles? Eles têm a própria personalidade, sabem o que querem e vão embora... E aí, o que sobra deste casal? Quanto tempo se perdeu...

As pessoas se acostumam a tudo, até a sofrer! Tudo é motivo de discussões desgastantes. Preferem ficar na solidão a dois, nas verdades não ditas, acumulando ressentimentos por motivos ínfimos. Estresse puro. Acham que é normal, não conhecem um relacionamento baseado no amor. Fica um clima pesado, tenso. Resulta em doenças da alma... Dependendo do caso, existem soluções, terapias e novas formas de serem felizes na mesma história. Outras maneiras de encarar o mesmo relacionamento. Necessita-se de diálogo, tolerância e autoconhecimento. Perdoar e perdoar-se muito, praticar o amor incondicional, descobrir que o mundo é bem maior...

Agora, se já não existe a questão da pele... são apenas dois amigos dividindo o mesmo espaço. Não adianta. Apagou o fogo, não acende mais. Tem gente que está casado há muitos anos, dorme na mesma cama e não rola nada! E quem casa sem estar apaixonada(o)? Cadê a química? Diagnóstico: não existe amor! Nesta história, todos saem machucados, ainda mais se insistem neste compromisso, por pura teimosia, culpas ou estagnação. Atração ou se sente ou não... Não dá para se programar: Dia 10 de outubro, vou começar a sentir atração por fulano... Quem sabe, um dia, talvez... Não permita que a sua vida passe em brancas nuvens!

Vale dar um tempo sozinha. A pessoa está tão acostumada a viver no inferno das brigas que estranha o silêncio, a paz e a harmonia. Os defeitos dos outros que nos incomodam são os mesmos que temos e não resolvemos. Você é 100% responsável por tudo que lhe acontece, não adianta tentar culpar ninguém!
Às vezes, o distanciamento pode trazer uma visão mais objetiva do relacionamento. Percebe que não é tão ruim assim... Consegue até pensar! Sai daquele turbilhão astral. Está mais feliz!

Volta ao mesmo relacionamento com mais intensidade, compreensão e amor.
O sentimento fica mais forte. Renovação do espírito. Pode pintar outra pessoa também... Aí, significa que o ex já faz parte do passado. Novas formas de se relacionar. Tem que dar certo? São tentativas que podem dar samba. Duas pessoas livres que escolheram traçar o mesmo caminho... Não existem garantias e nem certezas. Fica-se enquanto o relacionamento for bom e construtivo, se houver dor e tristeza... Virar a página e construir outra história. Também, acontece de preferir ficar sozinha. Tudo são oportunidades, opções, escolhas que o Universo nos oferece.

Seria tão sensato decidir através de uma visão lógica, mas a vida prega surpresas em cada esquina... O amor acontece quando menos se espera.
Sincronicidade: a pessoa certa, no momento exato, no mesmo lugar. Outros preferem chamar de destino. A energia pode ser sentida, mas não é tangível. É preferível viver 10 anos em um dia a um dia em 10 anos. Uma carícia, um cheiro, um olhar mais intenso... O coração tem razões que a própria razão desconhece... Como disse o rapaz do filme Cold Mountain (Montanha Gelada): Quando você acorda e o coração está dolorido de tanto pensar na pessoa... Como se chama este sentimento?

Não existem fórmulas mágicas. Não é uma receita de bolo. Cada história é única, especial, maravilhosa... Precisa-se de mais coragem, acreditar em seus sonhos, sentir a plenitude da vida. As mudanças são sempre positivas. Elas nos fazem crescer, aproveitar melhor os momentos, perceber os insights. Aguça a intuição, incentiva a criatividade, independente da decisão tomada. Escolha viver! Chute o balde!

Para que a energia positiva flua, é necessário dar o primeiro passo significativo: procure se autoconhecer! Assim, você fica sabendo o que realmente quer, quais são as suas potencialidades, crescer como ser humano. Trazer mais alegria para a sua vida e a dos outros. Transforme-se numa nova pessoa, promova uma virada de 180º graus, permita que o amor penetre em seu coração! Faça com que a sua vida valha a pena! Viva com intensidade todos os momentos, pois eles são únicos... Pequenos diamantes valiosos... Você merece tudo de bom!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A crença de que a felicidade é um direito...



Um dos textos mais belos que já li! Compartilho com vocês essa grande obra da Eliane... essa foi a forma que encontrei de dizer Parabéns e Obrigada!

Um grande abraço a todos que acompanham o blog e boa leitura!

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada!

::Eliane Brum::


Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.


Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.


Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.


Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.


É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.


Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.


A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.


Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.


Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.


Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.


Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.


Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.


Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.